Não há ganhos sem perdas. E, quando recebemos um novo papel da vida, perdemos uma porção de outras coisas. Muitas vezes, os ganhos superam as perdas. Ainda bem. É assim com a maternidade. Hoje eu vou contar uma história que ilustra bem o que estou dizendo.
Vivi boa parte da minha infância e adolescência muito perto dos meus avós. Os quatro moravam a quadras da minha casa, então, eu passava tardes e tardes com eles. Essa experiência contou muito para eu ser quem sou. Com meu avô paterno, um italianão bronco, ex-ciclista que virou bicicleteiro, descobri a importância de ser honesto acima de tudo e de cumprimentar as pessoas. Quando o Seu Bergamo não tinha clientes, matava o tempo na porta da bicicletaria, observando o vaivém na calçada. A mulher dele, a Dona Tosca (diz-se “Tósca”, como a da ópera do Puccini, beleza?), é uma espécie de espelho para mim. Bonachona, passional, exagerada e muito amorosa, criou cinco filhos. Achava que estávamos bonitos quando estávamos gordos, se preocupava com a família inteira e, com medo da criminalidade, anotava o telefone da polícia com caneta BIC na parede da sala, perto do telefone. Uma figura! Morreu pouco antes de completar 92 anos, quando eu estava grávida da Valentina. Minha outra avó, costureira de mão cheia, passou a vida fazendo vestidos de noiva, inclusive o meu. Ela sempre me chamava para “ajudar” nas provas e eu achava o máximo quando ensinava as noivas a caminhar com classe, a ajeitar o vestido, segurar a cauda, o buquê. Com Dona Julieta, tomei gosto por aquilo que dizem ser a casa do Diabo: os detalhes. Foram ela e do meu avô, o Seu Manoel, que me iniciaram no mundo das viagens. Eles adoravam pegar o carro e dar escapadinhas de fim de semana. Quem ia junto? Eu e meu irmão. Isso sem falar nas férias na praia e no campo. Que tempo bom! Eu demorei a perceber, mas vem deste casal, e, sobretudo, do meu avô, esse meu lado trabalhador. Meu avô, cujo primeiro emprego foi aos 10 anos de idade, sempre deu valor à gente que faz. Talvez por isso eu tenha me apegado tanto a algo que foi dele: uma máquina de escrever.
Meu avô Manoel não é escritor, jornalista ou algo do tipo. Muito pelo contrário, segundo consta, mal foi à escola. Mas, até hoje, o dia não é dia para ele se não leu o jornal. Até domingo passado, ele mantinha em sua casa uma máquina de escrever Olivetti que deve ter uns bons 70 ou 80 anos. Ele a usava em um dos seus poucos empregos e comprou – ou ganhou, não sei bem a história – quando saiu de lá, umas quatro décadas depois. Diante do trambolho (vocês têm ideia do quanto eram pesados nesses negócios antigamente?), apertando com força meus dedos sobre suas teclas, eu fui secretária, bancária, professora, escritora, jornalista. Ah! Como eu era jornalista ali… Ficava imaginando uma redação esfumaçada – era o que eu via nos filmes da época – cheia de homens de camisa e colete e eu lá, escrevendo… Mais velha, fiz teatro. Ao montar uma peça onde havia um escritório de um detetive, pedi a máquina emprestado para compor o cenário. Com muito custo, cosegui tirá-la da casa dos meus avós por uns dias.
Por essas e outras, pedi a máquina ao meu avô algumas vezes. Parei há algum tempo, quando ele começou a ficar doente. Achei indelicado. Fiquei com medo que ele pensasse que eu estava repartindo heranças antes da hora. Eis que, na família, havia outro interessado: meu primo adolescente, que, assim como eu e meu irmão, passa tardes e tardes com meus avós. Quando percebi o interesse, o avisei logo sobre minha história com aquela peça. Deu de ombros. Avisei, então, minha avó e minha mãe. Mas isso faz algum tempo.
Onde essa história vai parar? Domingo passado, eu perdi a máquina. Meu avô, desmemoriado que está graças aos seus 80 e tantos anos, a deu de presente de 15 anos para meu primo. Não pude esconder a decepção durante a festinha na casa dos meus tios. Fiquei zangada, tentei fazer piada, enraiveci e reclamei para quem sabia da história, mas poupei meu avô porque sei que ele não se lembra e ficaria muito triste com tudo aquilo. O que eu ouvi do pessoal: “Giuliana, pare com isso. Ele é criança, você é adulta. É MÃE. Que bobagem…”. Como se o fato de eu ter mais de 30 e uma filha para criar não me desse o direito de ter apego e afeto a uma espécie de brinquedo que teve uma importância real para mim. Com a máquina, foi-se o posto de menina, o de neta, o de filha. Ficou o de mãe.
Foto: Marcos Sicilia
*Texto originalmente publicado em n.magazine